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segunda-feira, 27 de julho de 2015

Vim-me embora

Anteontem fechei pela última vez a porta da casa que foi minha durante onze meses. Onze meses não é muito, mas como me foi ensinado na última vez que estive no estágio (para me despedir, de relatório já entregue e coração apertado), o tempo é qualitativo. E estes onze meses tiveram muitos anos dentro deles, cada mês teve pelo menos uns dois ou três anos lá dentro. 

Eu apego-me às casas. Quando cheguei esta casa esta ainda não era minha, mas rapidamente se tornou à medida que a ia enchendo de cheiros e de recordações. Uma vez falei sobre isso à minha bisavó, sobre eu me ligar tanto a meia dúzia de paredes. Ela diz que sempre fui assim, e que com cinco anos chorava abraçada às paredes da minha casa antiga. Depois habituei-me, assim que fui enchendo novas casas de mim.

Como nos desligamos dos espaços em que fomos felizes? Felizes e infelizes, dá o mesmo. Voltei à casa dos meus pais, mas esta já não parece a minha casa - mas ao contrário de quando tinha cinco anos, sei que bastarão apenas algumas semanas para que volte a ser minha. Mas por enquanto faltam-me os cheiros, as portas onde ao início batia tantas vezes (antes de me habituar aos espaços o meu corpo não calcula bem as distâncias...), o meu quarto com a janela que fechava mal, a cozinha enorme, a mancha de humidade da casa de banho. 

A minha casa do Barreiro viu muitas coisas, e nela cresci muito, muito. Mais do que imaginava. Viu sonhos nascer e morrer, alguns antes de terem tido tempo de nascer como deve ser. Viu muitas gargalhadas mas muitas lágrimas, também (mas mais gargalhadas, felizmente). Viu bons cozinhados e arroz esturrado (primeira e única vez!). Viu crises existenciais, procuras absolutas pelo sentido da vida, viu dúvidas e acolheu inquietações. Viu frustrações e realizações (e conseguimos tanta coisa...). Viu um homicídio (RIP Eusébio), uma bebedeira soft mas que terminou com fotos incriminadoras (ai de quem... um dia...). Viu jantares de amigos, um almoço de família, visitas surpresa, post-it's nas paredes (num dia em que demorei 3 horas a atravessar o Tejo, cortesia de uma pseudo bomba) e mensagens na mesa da cozinha. Encheu-se de esquemas a giz, num dia em que a minha amiga Ana achou boa ideia morarmos dentro da tese dela. Nesta casa aprendi a mudar lâmpadas e a acender uma lareira, mas continuo sem força suficiente para abrir frascos, e descobri que se calhar um homem até faz falta, até para pseudo feministas como eu. Às vezes os dias naquela casa eram só noites, e passavam sem dar por eles. Outras vezes eram enormes e pesados, nunca mais acabavam (eram dias que também tinham meses lá dentro...).

Mas fui feliz. A casa era nova, grande, bem dividida e bonita. Era a casa que achava perfeita para viver um dia, sem prazo limite de saída. Apaixonei-me por ela assim que a vi da primeira vez, ainda com tudo por arrumar mas cheia de luz. Para além de luz, vinha cheia de humidade também. A minha roupa ficou cheia de bolor obrigando-me a várias lavagens de vez em quando. Às vezes no inverno tinha tanto frio de noite que ficava agoniada (depois melhorou com uma botija eléctrica). Cheguei a achar que o verão não viria nunca. O frio e a humidade entranhavam-se em mim, e trabalhei todo o inverno no chão frente à lareira (hábito que passou para o verão, confesso). A casa de banho ganhou uma enorme mancha negra no tecto, que a minha mãe conseguiu eliminar com força e lixívia numa vez que me foi visitar (durou uma semana até recomeçar novamente a povoar o tecto). O esquentador dava problemas de vez em quando, obrigando a incursões à cozinha a pingar e a tremer de frio e a ajuda mútua entre mim e a minha amiga Ana. O forno estava tão sujo que saí de lá sem nunca ter ficado limpo como deve ser, mesmo com os nossos muitos esforços e produtos. De vez em quando os vizinhos dos outros prédios discutiam. Ouvi um homem ser expulso de casa por ter chegado a horas impróprias. Uma vez, já nestas noites de calor, um grupo pôs-se a tocar guitarras mesmo debaixo da minha janela, deviam ser três da manhã. 

Mas era a minha casa e era perfeita. Era minha. Vou ter saudades dela.  

 P.S. Este post não tem nada a ver com culinária, mas quem eu sou não se divide em gavetas nem exige categorizações, e, tal como todas as receitas aqui publicadas, este texto também é uma parte de mim :)























3 comentários:

  1. Também sou muito apegada às coisas e então à minha casa nem se fala! Pode ser grande ou pequena, com ou sem humidade, quente ou fresca, luminosa ou não... é minha! É o meu mundo, o meu porto de abrigo, o meu refúgio! Criam-se memórias, que perduram. E é essas memórias que deves guardar! E um dia também hás-de ter o teu cantinho! Beijinhos

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